sexta-feira, 19 de março de 2010

O Deus da Matança

"Nada nos torna mais infelizes do que o dever de resistirmos ao nosso fundo primitivo, ao apelo das nossas origens. Daí resultam estes tormentos de civilizados reduzidos ao sorriso, atrelados à cortesia e à duplicidade, incapazes de aniquilar o adversário a não ser em palavras, votados à calúnia e como que desesperados por termos que matar sem agir, através da simples virtude da linguagem, esse punhal invisível. As vias da crueldade são diversas. Substituindo-se à selva, a conversa permite à nossa bestialidade despender-se sem dano imediato para os nossos semelhantes. Se, pelo capricho de uma potência maléfica, perdêssemos o uso da fala, ninguém mais ficaria em segurança. Conseguimos transferir para os nossos pensamentos a necessidade de assassínio, desde sempre inscrita no nosso sangue: essa acrobacia explica por si só a possibilidade, e a permanência, da sociedade. Deveremos concluir que logramos assim triunfar sobre a nossa corrupção nativa, os nossos talentos homicidas? Seria considerar com excessiva ligeireza as capacidades do verbo e exagerar os seus prestígios. A crueldade que herdámos, de que dispomos, não se deixa domar com tanta facilidade; enquanto não nos lhe entregamos por completo e não a esgotamos, conservamo-la no mais secreto de nós, e não nos emancipamos dela."
E.M. CIORAN Excerto de “A Odisseia do Rancor”. In História e Utopia. Trad. Miguel Serras Pereira. Venda Nova:Bertrand Editora, 1994. p. 107-109.
A peça inicia-se com uma sala impecavelmente preparada para receber os personagens. O casal anfitrião, pais do menino "ferido", recebe os pais do "agressor". O desconforto denota-se quer nuns, quer noutros, até porque a situação é já em si constrangedora, mas como adultos civilizados, tentam resolver as coisas de forma correcta e democrática e é aí, que para quebrar o "gelo" se misturam assuntos, se abrem as portas, não só da casa, como também das vidas, do descontentamento, das frustrações, da ira, do stress...
Aquilo que parecia uma tentativa de amenizar uma simples luta de crianças, passou a um duelo entre todos, porque todos eles se sentiam reprimidos pelo politicamente correcto e de repente já os berros, a cólera, a agressão se tornaram uma forma de libertação... aquilo que aconteceria em muitas casas, se não houvesse a barreira do respeito e da contenção... porque o que seria se todos disséssemos aquilo que nos passa pela cabeça? 
(estou a ler um livro que diz que existe um "Síndrome Transitório de Desinibição" que faz com que essas pessoas não consigam usar as ferramentas mentais (prudência, respeito, convenções sociais e afins) para controlar o que dizem e simplesmente dizem tudo o que lhes vai na cabeça... Perigoso, não?!)
Confesso que me ri bastante e que só quando cheguei a casa percebi que deveria ter saído da sala com um olhar pesaroso, porque Yasmina Reza pede "Por favor, parem de rir de mim", não consegui...

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