sábado, 27 de março de 2010

Antígona + Aldina Duarte


"“Para onde olhar?”, pergunta Creonte, mesmo no final de Antígona, a tragédia com que Sófocles encerra a sua Trilogia Tebana.
“Para onde olhar?”, pergunta o rei, quando à sua volta se vê só morte e desolação: mortos estão Eurídice, sua mulher, e Hémon, seu filho, morta está sua sobrinha Antígona, e é de um mundo de sangue derramado pelas mortes de Polinices e Etéocles, irmãos de Antígona, que a cidade de Tebas acaba de emergir.
E todavia, Tirésias, o profeta cego, a quem todos os prazeres são, ao mesmo tempo, proibidos e permitidos, mostrara‑lhe, na cegueira, o caminho da visão. É na cegueira que Tirésias vê o que Creonte, com olhos sãos (ao contrário de Édipo, que os vazara), não vislumbra. E é a cegueira, herdada dessa linhagem tocada pela tragédia, a de Édipo, que Antígona repele e, ao mesmo tempo, acolhe.
O lamento de Antígona: “Vede, ó príncipes de Tebas, vede a herdeira da casa real, vede o que eu sofro da parte destes homens”. Antígona, cujo gesto de desafio ao pretender dar igual sepultura ao corpo do irmão banido prevê reflexões modernas sobre o desigual valor das vidas e dos corpos. E do chorar as mortes."
...

“Olhai! Do mesmo sangue / é quem morreu e quem matou”
Ana Luísa Amaral

""Estamos sós com tudo aquilo que amamos."
Novalis
O ensaio de Antígona, a que ontem assisti, desde o início que me evocou Novalis.
Quando, pouco antes da primeira intervenção do Coro, Ismena diz à irmã: “Mas, então, não fales disso a ninguém, guarda‑o para ti; eu farei o mesmo”, fui assaltado por uma citação desse poeta que trago comigo há décadas. Não resisto citá‑la em alemão, tantas são as vezes que a rezo em surdina: “Was du wirklich liebst, das bleibt dir”. (“Aquilo que deveras amas, conserva‑o para ti.”) É disso que trata a Antígona com que me deparei nesse ensaio de palco. Trata do Amor e do Segredo, seu pedagogo."
...
Francisco Morão Dias

Uso as palavras de outros para descrever aquilo que vi, porque nelas vejo reflectida a minha percepção da história. Antígona, mostra-nos até onde vai o orgulho do Homem, até onde vai a ânsia no poder e como isso lhe transmite a sensação de ser Deus. Mostra-nos também que por muito que a maioria se vergue ao medo soberano, existe sempre alguém disposto a escapar-lhe e a fazer o que é certo, sob qualquer penitência que lhe seja imposta!
Ironicamente é um cego que mostra a Creonte que está errado, "mostrara‑lhe, na cegueira, o caminho da visão.", acho brilhante a frase. Dizem que pior cego é aquele que não quer ver e muitas vezes a raiva e arrogância conduzem-nos a um final que nem sempre nos é perdoado, porque quando nos arrependemos pode ser tarde demais como foi para Creonte...



No dia Mundial do Teatro, o TNSJ não só nos presenteou com entradas grátis para Antígona, como também nos "ofereceu" (neste caso não foi literal) um concerto soberbo. 
Confesso, não conhecia Aldina Duarte, nem sequer tinha ouvido falar, mas a Muse of Hell tinha reservado bilhetes para "Mulheres ao Espelho" e decidi alterar também a minha reserva de teatro, para poder ver as duas coisas... tenho de agradecer-lhe também a ela, sempre atenta...
Durante o concerto, fiquei só, naquela sala, a assistir a Aldina Duarte (voz), Paulo Parreira (guitarra portuguesa) e Carlos Manuel Proença (viola). Eles os 3 a contaram aquela que podia ser a minha história, a minha vida, os meus sentimentos... abri o meu coração e deixei entrar a saudade daquele fado... a eterna saudade do que foi e não voltará a ser (como já escrevi algures). Falo por mim... eu estive a ver o meu reflexo no espelho daquelas músicas. No final do concerto, de sonhos perdidos na imensidão do tempo, eu sentia-me feliz, porque do que foi ficaram estas palavras, que cantadas soam tão bem!
Agradeço à S. o convite que me deixou e espero que esteja a aproveitar ao máximo o merecido descanso! 
Deixo alguns excertos dos fados que muito me tocaram.

"Agora que não me dás nada, dás-me um pouco de paz."
"Se te querias ir embora, não ganhastes com a demora, de partires mais culpado"
"O amor não se desata e a tua paixão morreu, mas a minha não se mata"

Fotografias retiradas do Manual de Leitura de Antígona TNSJ

sexta-feira, 19 de março de 2010

O Deus da Matança

"Nada nos torna mais infelizes do que o dever de resistirmos ao nosso fundo primitivo, ao apelo das nossas origens. Daí resultam estes tormentos de civilizados reduzidos ao sorriso, atrelados à cortesia e à duplicidade, incapazes de aniquilar o adversário a não ser em palavras, votados à calúnia e como que desesperados por termos que matar sem agir, através da simples virtude da linguagem, esse punhal invisível. As vias da crueldade são diversas. Substituindo-se à selva, a conversa permite à nossa bestialidade despender-se sem dano imediato para os nossos semelhantes. Se, pelo capricho de uma potência maléfica, perdêssemos o uso da fala, ninguém mais ficaria em segurança. Conseguimos transferir para os nossos pensamentos a necessidade de assassínio, desde sempre inscrita no nosso sangue: essa acrobacia explica por si só a possibilidade, e a permanência, da sociedade. Deveremos concluir que logramos assim triunfar sobre a nossa corrupção nativa, os nossos talentos homicidas? Seria considerar com excessiva ligeireza as capacidades do verbo e exagerar os seus prestígios. A crueldade que herdámos, de que dispomos, não se deixa domar com tanta facilidade; enquanto não nos lhe entregamos por completo e não a esgotamos, conservamo-la no mais secreto de nós, e não nos emancipamos dela."
E.M. CIORAN Excerto de “A Odisseia do Rancor”. In História e Utopia. Trad. Miguel Serras Pereira. Venda Nova:Bertrand Editora, 1994. p. 107-109.
A peça inicia-se com uma sala impecavelmente preparada para receber os personagens. O casal anfitrião, pais do menino "ferido", recebe os pais do "agressor". O desconforto denota-se quer nuns, quer noutros, até porque a situação é já em si constrangedora, mas como adultos civilizados, tentam resolver as coisas de forma correcta e democrática e é aí, que para quebrar o "gelo" se misturam assuntos, se abrem as portas, não só da casa, como também das vidas, do descontentamento, das frustrações, da ira, do stress...
Aquilo que parecia uma tentativa de amenizar uma simples luta de crianças, passou a um duelo entre todos, porque todos eles se sentiam reprimidos pelo politicamente correcto e de repente já os berros, a cólera, a agressão se tornaram uma forma de libertação... aquilo que aconteceria em muitas casas, se não houvesse a barreira do respeito e da contenção... porque o que seria se todos disséssemos aquilo que nos passa pela cabeça? 
(estou a ler um livro que diz que existe um "Síndrome Transitório de Desinibição" que faz com que essas pessoas não consigam usar as ferramentas mentais (prudência, respeito, convenções sociais e afins) para controlar o que dizem e simplesmente dizem tudo o que lhes vai na cabeça... Perigoso, não?!)
Confesso que me ri bastante e que só quando cheguei a casa percebi que deveria ter saído da sala com um olhar pesaroso, porque Yasmina Reza pede "Por favor, parem de rir de mim", não consegui...

Candeeiro #22

Candeeiro em Belém - Março 2010

segunda-feira, 15 de março de 2010

Something's missing...

Escultura "Sphere within Sphere" de Arnaldo Pomodoro, Trinity College, Dublin - 2007
É pequenino, tão pequeno que nos instantes ocupados do tempo nem se percebe a sua existência.
Esforça-se por não incomodar, fica imóvel e é feito de uma matéria desconhecida, mas firme, que não se desgasta com o tempo, que não prospera com a alegria, mas entranha-se na tristeza e é nela que ganha espaço, um espaço invisível, que se mantém pequeno, mas para quem sente, parece enorme, parece ocupar o espaço de tudo o resto.
Não se devem ignorar as coisas pequenas, por pouco que pareçam são elas que se podem transformar em algo grande, seja isso bom ou mau!
E é nesse pequenino espaço dentro de mim, que por vezes me perco, horas, dias, semanas, é com ele que tenho monólogos imaginários à procura de respostas, até hoje não encontradas.
Pergunto-lhe muitas vezes, porque não se mostrou naqueles instantes em que os meus olhos brilhavam na magia ilusória de um amor possível (durante tantos anos)?
Onde estava ele quando eu me afogava em sorrisos e carinhos para alguém que não guardou nem um pedaço de mim?
Onde estava ele, quando eu me sentia banhada pelo prazer imenso daquela companhia, daqueles beijos, daqueles abraços, daquele toque na pele que me arrepiava?
Onde estava ele quando eu me sentia tão completa e sentia que era aquilo que eu queria para a minha vida? Aquele olhar, aqueles beijos, aquela presença, aquela pessoa? Que era dali que queria que nascessem os meus filhos?
E faço-me todas essas perguntas, porque aí ele também devia ter estado presente, porque de vazio se encheram esses momentos, essa presença ausente e essa pessoa. 
Uma desmesura de sua parte ter-se escondido nesses momentos.
Esse pequeno espaço de mim que me faz sentir, por vezes, a falta desse preenchimento... falta-me qualquer coisa... e não sei bem o quê!
Às vezes essa pequena lacuna, faz-me sentir só, mesmo numa sala cheia de gente e não há sorrisos, palavras, que acendam a luz do negro que surge dentro de mim.
Mas eu, que não sou pessimista, que adoro estar alegre, quando ganho força, abro as persianas, saio de casa e vou atrás daquilo que falta, seja lá o que for... e em dias como hoje, em que me sinto bastante animada, em que danço e rio para as pessoas, em que me sinto amada e amo, não deixo no entanto de saber que ele existe e não o consigo perdoar por me fazer lembrar de todos os momentos em que ele se devia ter feito sentir presente, momentos que não agora, pois o agora é feito de sinceridade e realidade, mas do passado e das lembranças, porque "mesmo o que não é verdade, entra-nos pelo coração adentro"!

John Mayer -  Something's missing


Um dia alguém me disse algo do género "For a lonely soul, you're having such a nice time" (Nothing on my way dos Keane), pois é, não é porque me falta algo, não é porque gostei da pessoa errada e não fui correspondida que deixo de ter momentos especiais, pessoas especiais, que deixo de sorrir, e viver... e ser feliz, ainda que não absolutamente, mas pelo menos continuo a lutar!

sexta-feira, 12 de março de 2010

Frases soltas...

...passeavam por Lisboa
Cascais - 2009


A propósito do pão de queijo - "Quentinho e com manteiga é muito bom!" (para o enjoo suponho)


"O Xarope se soubesse a caipirinha é que era bom!"


"Nunca tive tanta potência como agora!"


"Arranjei-me, fiz a barba, e fui esperá-la à estação. Quando ela me viu perguntou logo 
-Estás tão lindo! onde vamos? 
Vamos mas é para casa dar uma!"
(valeu a produção, digo eu)

quarta-feira, 10 de março de 2010

O Rei Édipo


Escrita por Sófocles por volta de 427 a.C., Rei Édipo foi considerada por Aristóteles o mais perfeito exemplo de tragédia. No mito de Édipo, confrontamo-nos com as nossas perguntas sobre a identidade do poder, a ascensão e queda dos vitoriosos, a incerteza da vida, a relação entre o público e o privado, o desígnio do destino em oposição ao livre arbítrio. Jorge Silva Melo apresenta uma nova versão desta tragédia que é uma das peças mais adaptadas e interpretadas em todo o mundo.
A peste atinge a cidade. E o Rei Édipo quer saber porquê. Juntam-se as gentes à porta do palácio. E o Rei vem ter com a multidão e diz:

Nas ruas,
 há gemidos, cantos fúnebres, lamentos.

Mas chora o quê a nossa cidade?

Que esperais?

De pergunta em pergunta, de resposta em resposta, os enigmas vão caindo. Édipo quer saber. Quer saber que maldição paira sobre a sua cidade, quer saber quem é. Vai descobrir uma verdade tremenda. Esta é a tragédia do saber.

E esta visita a Lisboa foi marcada por vários momentos em que a verdade surgia como a traiçoeira rasteira à felicidade, como se fosse ela que marcasse a diferença entre viver feliz ainda sem que ela se desvende, ou ser quase amaldiçoado quando ela se mostra por completo.
Como ouvi nesta peça "mesmo o que não  verdade entra-nos pelo coração adentro", e pode tornar-nos cegos como Édipo, para o resto das nossas vidas!

terça-feira, 9 de março de 2010

Don't tell me the truth




Perdemos a primazia de certos instantes, porque a vida assim nos obriga... desta vez foi excepção.

Não importa sermos os primeiros, é verdade, mas importa que façamos aquilo que realmente nos dá prazer e ir a uma exposição do João Figueiredo é algo que me faz sempre bem.

Consigo ficar imenso tempo a olhar cada quadro e adoro ver e rever. Há sempre tanto que nos escapa ao primeiro olhar, existem outras coisas que nos escapam nos restantes e ainda outras que não se desvendam...

Aqueles quadros têm vida, têm história, têm uma alma própria que lhes é passada pela mão do artista que lhes dá vida.
Não consigo explicar bem de onde surgiu a enorme admiração que tenho, mas é como acontece com as paixões, não se explicam! A verdade é que a minha primeira grande paixão está pendurada na minha sala.
Mas voltando a "Don't tell me the truth", é uma exposição que desvenda os segredos de alguns casais... não precisam de ser casais específicos, são casais nesta vida, milhares de casos... Os pormenores que desvendam esses segredos são sublimes e fazem-nos sempre ir mais além! São escolhidas aleatoriamente obras, dos mesmos autores ou não, e os homens e mulheres são reinventados e contam uma história sempre aos pares, excepto o quadro acima, que dá nome à exposição e que é foi o que deu início à ideia para esta exposição! Todos temos segredos e não existem relações perfeitas, esta exposição assim o demonstra!
Aquilo que parece, nem sempre é aquilo que é... "A verdade dói e pode estar errada" escreveu João Negreiros e se na verdade não soubéssemos toda a verdade acerca daqueles que amamos, não poderia ser o nosso amor, mais calmo e até mesmo mais perfeito? Para quê saber-se tudo, para quê tingir as histórias com cores que não lhes pertencem?!
Nestes últimos meses tenho pensado imenso nisso e na história que foi minha "Pouvez-vous m'aimer?" a resposta que tive foi "Flamboyant ces't moi", mas se pudesse escolher a partir desta exposição, eu seria "The Master" e teria a meu lado "The believer" pois apesar dos segredos que existem... cada um fica com os seus e a ligação permanece.
É uma exposição que aconselho vivamente, até porque as fotografias, por muito boas que sejam, não nos dão a dimensão e o brilho de olharmos os quadros de perto.


Até 10 de Abril na Câmara dos Azuis
Avenida Elias Garcia 157 A/B
Lisboa

segunda-feira, 8 de março de 2010

Feliz Dia da Mulher



Existem milhares de frases que poderia colocar aqui, mas esta para mim, engloba o que qualquer mulher deseja (a meu ver)*.

"Uma mulher bonita não é aquela de quem se elogiam as pernas ou os braços, mas aquela cuja inteira aparência é de tal beleza que não deixa possibilidades para admirar as partes isoladas."
Lucius Annaeus Seneca
Ser um todo e não a parte.
Um beijo em especial às mulheres mais importantes da minha vida e que me aturam há 27 anos... a minha Mãe e a minha Avó.
*Peço desculpa, mas tive de repetir a do ano passado.. 

domingo, 7 de março de 2010

Precious



Em noite de óscares, esta foi a minha escolha para o serão!
Este filme que tinha tudo para fazer chorar, transmite-nos acima de tudo a esperança... apesar da tendência efémera (dadas as circunstâncias)! Mas efémera também pode ser a vida e sendo assim, fico-me pela esperança!
Precious é uma adolescente vítima de maus tratos, tratada como escrava pela mãe, violada pelo pai com quem acaba por ter 2 filhos, esta adolescente de 16 anos, nunca perde a capacidade de sonhar e é isso que dá vida e cor a este filme!
Além de que, devo confessar, ver o Lenny Kravitz como enfermeiro, foi precious!!

sábado, 6 de março de 2010

Nascer do Sol em Copacabana - Dezembro 2009

Hoje finjo esquecer-me do impossível!
Finjo que não existes para mim e que eu não existo para ti!
O que fazer quando alguém apaga o nosso nome da história da sua vida??
Como se os anos em comum pudessem ser apagados com um só gesto e pela vontade, certa ou não, de uma pessoa!
Ainda que sem uma explicação lógica, ainda que sem completa certeza de que este é o melhor caminho, a única coisa que nos resta é fingirmo-nos de mortos, mesmo sem estarmos!
É tudo uma questão de hábito e hoje não só te sinto bem distante, como também eu me sinto livre e feliz!
P.S.- Parabéns!!

sexta-feira, 5 de março de 2010

Blackbird


"Quando decidi que queria encenar esta peça, a principal razão foi a de poder estar por perto enquanto dois actores se apoderam lentamente de dois personagens complexos e instáveis, cheios de dúvidas, incertezas e sofrimento. Como profundo admirador do trabalho de actor, pareceu-me sempre que seria um processo enriquecedor. E foi, claramente. Mas foi também preciso passar por todas as zonas escuras com eles, sofrer com eles e perdermo-nos por vezes, arriscando, experimentando, falhando. Ainda bem que tivemos sempre as palavras de David Harrower como mapa do caminho que havia a percorrer. Um mapa rigoroso para um caminho adverso e sombrio em tons cizentos, nunca preto no branco, onde os personagens se contradizem, se explicam, se acusam e que nunca nos deixam o conforto de uma certeza na busca da verdade. Das suas verdades, a de cada um. Verdades infestadas pelos seus percursos e escolhas, e pela forma como o mundo foi interferindo com ambos. Blackbird não nos conduz a nenhuma certeza. E por muito que Ray e Una procurem encontrar respostas um no outro, estão sempre sós na busca incessante de um significado, de uma razão. Como todos nós."
Tiago Guedes

E na verdade, depois de ver a peça, as respostas não são certas, abaladas estão a certezas de sabermos que o adulto é sempre o predador e a presa a inocente criança! Fica-nos a dúvida...

quinta-feira, 4 de março de 2010

So you go... and I stay!


Malas feitas para longe... sinto que a tristeza fez as malas para se ir embora, quem sabe de vez ou pelo menos por um bom tempo!
Neste instante, é como se atravessasse o oceano das mágoas em direcção a outro continente onde a nova presa a aguarda expectante, sem saber bem que aquela bela mala vermelha, vai vazia de conteúdo, leva apenas a frivolidade no sorriso!
Por cá, deixa o frio lá fora, mas o que sinto cá dentro é quente, como se todos os meus órgãos voltassem a sentir o prazer da vida!
Vai... faz boa viagem para onde quer que vás e se um dia voltares, fica sabendo que não és bem vinda!
The door is CLOSED!

terça-feira, 2 de março de 2010

Carta da Corcunda para o Serralheiro

 Catedral de Notre Dame

Senhor António:
O senhor nunca há de ver esta carta, nem eu a hei de ver segunda vez porque estou tuberculosa, mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o não saiba, porque se não escrevo abafo.
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o senhor passa para a oficina e eu olho para si, porque o espero a chegar, e sei a hora que o senhor chega. Deve sempre ter pensado sem importância na corcunda do primeiro andar da casa amarela, mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar consigo ainda que o senhor me não desse razão de nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar.
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha doença e eu estou-lhe agradecida sem que o senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém que gostasse de mim como se gostasse das pessoas que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, e também tenho o direito de chorar, que não se negue a ninguém.
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a primeira vez mas nunca terei coragem nem maneiras de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que eu gostava muito de si, mas tenho medo que se o senhor soubesse não se importasse nada, e eu tenho pena já de saber que isso é absolutamente certo antes de saber qualquer coisa, que eu mesmo não vou procurar saber.
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre riram de mim. Dizem que todas as corcundas são más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além disso sou doente, e nunca tive alma, por causa da doença, para ter grandes raivas. Tenho dezanove anos e nunca sei para que é que cheguei a ter tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que é o menos, porque é a alma que me dói, e não o corpo, pois a corcunda não faz dor.
Eu até gostava de saber como é a sua vida com a sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca posso ter — e agora menos que nem vida tenho — gostava de saber tudo.
Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas o senhor não vai ler isso, e mesmo que lesse nem sabia que era consigo e não ligava importância em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que é triste ser marreca e viver sempre só à janela, e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem ninguém que goste de nós, porque tudo isso é natural e é a família, e o que faltava é que nem isso houvesse para uma boneca com os ossos às avessas como eu sou, como eu já ouvi dizer.
Houve um dia que o senhor vinha para a oficina e um gato se pegou à pancada com um cão aqui defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o senhor parou, ao pé do Manuel das Barbas, na esquina do barbeiro, e depois olhou para mim, para a janela, e viu-me a rir e riu também para mim, e essa foi a única vez que o senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que isso nunca poderia eu esperar.
Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à espera que houvesse outra coisa qualquer na rua quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito para os meus.
Mas eu não consigo nada do que quero, nasci já assim, e até tenho que estar em cima de um estrado para poder estar à altura da janela. Passo todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas que emprestam à minha mãe, e estou sempre a pensar noutra coisa, tanto que quando me perguntam como era aquela saia ou quem é que estava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, eu às vezes me envergonho de não saber, porque estive a ver coisas que não podem ser e que eu não posso deixar que me entrem na cabeça e me dêem alegria para eu depois ainda por cima ter vontade de chorar.
Depois todos me desculpam, e acham que sou tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, porque assim não tenho que explicar porque é que estive distraída.
Ainda me lembro daquele dia que o senhor passou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não era azul claro, mas era uma sarja muito clara para o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o senhor não fosse ter com ela mas com outra qualquer, porque eu não pensei senão em si, e foi por isso que invejei toda a gente, o que não percebo mas o certo é que é verdade.
Não é por ser corcunda que estou aqui sempre à janela, mas é que ainda por cima tenho uma espécie de reumatismo nas pernas e não me posso mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que é uma maçada para todos cá em casa e eu sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às vezes dá-me um desespero como se me pudesse atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era ainda mais maçada para os outros, e estou a ver-me na rua como uma macaca, com as pernas à vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo ou a rir se calhasse, porque a gente é como é e não como tinha vontade de ser.
O senhor que anda de um lado para o outro não sabe qual é o peso de a gente não ser ninguém. Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente passar de um lado para o outro e ter um modo de vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que sou um vaso com uma planta murcha que ficou aqui à janela por tirar de lá.
O senhor não pode imaginar, porque é bonito e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem, e uns são ministros e andam de um lado para o outro a visitar todas as terras, e outros estão na vida da sociedade e casam e têm baptizados e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos médicos, e outros partem para as suas casas aqui e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns fazem grandes crimes e há artigos assinados por outros e retratos e anúncios com os nomes dos homens que vão comprar as modas ao estrangeiro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para quem é um trapo como eu que ficou no parapeito da janela de limpar o sinal redondo dos vasos quando a pintura é fresca por causa da água.
Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu gostava de se lhe poder pedir isso, porque o senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais, que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor me dava os bons dias por acaso.
A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez, que lhe falou torto porque o senhor se meteu com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que eu senti inveja a valer, eu confesso porque não lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não mulher nem homem, porque ninguém acha que eu sou nada a não ser uma espécie de gente que está para aqui a encher o vão da janela e a aborrecer tudo que me vêm, valha me Deus.
O António (é o mesmo nome que o seu, mas que diferença!) o António da oficina de automóveis disse uma vez a meu pai que toda a gente deve produzir qualquer coisa, que sem isso não há direito a viver, que quem não trabalha não come e não há direito a haver quem não trabalhe. E eu pensei que faço eu no mundo, que não faço nada senão estar à janela com toda a gente a mexer-se de um lado para o outro, sem ser paralítica, e tendo maneira de encontrar as pessoas de quem gosta, e depois poderia produzir à vontade o que fosse preciso porque tinha gosto para isso.
Adeus senhor António, eu não tenho senão dias de vida e escrevo esta carta só para a guardar no peito como se fosse uma carta que o senhor me escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo que o senhor tenha todas as felicidades que possa desejar e que nunca saiba de mim para não rir porque eu sei que não posso esperar mais.
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda a minha vida.
Aí tem e estou toda a chorar."
("Carta da Corcunda para o Serralheiro" (Maria José, heterónimo de Fernando Pessoa) 

Ouvi esta "carta" em duas ocasiões, no Turismo Infinito, pela voz da fantástica Emília Silvestre, que na altura me arrepiou ao dizer isto de uma forma tão terna, sentida, com aquele entoar de uma voz querida e sôfrega ao mesmo tempo, ora lento, ora rápido, sempre brilhante! A outra vez foi na centésima edição das Quintas de Leitura... e agora quero deixá-la aqui, para que este texto... fique!