sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

A Febre


"A Febre é um nó por desatar. Um punho fechado: um murro, um coração, um gesto político. Um texto que não se furta ao excesso, à contradição, à dúvida, ao conflito; uma voz que segue assim, aos trambolhões, claríssima, até ao extremo, para lá da margem, para lá da pergunta, até ao próprio limite da identidade.
De um lado, os balões alegres de que todos gostamos, candelabros bonitos, embrulhos maravilhosamente complicados com delicadas jarras de porcelana dentro, caixas que dão suspirozinhos, bailados e óperas, peúgas difíceis de encontrar, amigos divertidos, enfim, a vida, a vida!, a vida que, sim, pois, deve ser festejada. E, do outro lado, a guerra, a tortura, fotografias de cadáveres, o cheiro esquisito das salas de estar dos pobres, a carne nojenta que parece aumentar no nosso prato, os rapazes maus do bairro mau, os países “em desenvolvimento”, a empregada da limpeza que nasceu para ser aquilo e nunca poderá ser mais que aquilo, o medo, o ódio, a loucura, o vómito. De um lado, Juana, a bela guerrilheira, a bela mártir, olhos brilhantes que aprendemos a admirar. E, do outro lado, o gelado descoberto no hotel obscenamente caro do país revolucionário que visitámos por causa de uma tichârte, o gelado viciante e inesquecível, o gelado multicolor que nos há ‑de doer para sempre (mas nunca o diremos, não podemos dizê ‑lo nunca, é segredo, chh).
"…e portanto sim, precisamos de conforto, precisamos de consolo, precisamos de boa comida,
precisamos de coisas boas para vestir, precisamos de belos quadros, filmes, peças de teatro, passeios no campo, garrafas de vinho.” [A Febre]
E, no entanto, aqui não há conforto. Não há, pelo menos, o conforto habitual, o consolo de sempre.
Uma peça que não nos apanha pela “empatia” costumeira das ficções, antes por esta horrível
“cumplicidade” no crime. No crime da injustiça, da desigualdade, da desesperança. No crime da não abolição da morte.
A certa altura, a propósito de marxismo e relações de produção, o protagonista de A Febre dá o exemplo de um homem a abrir uma revista de mulheres nuas. Diz ele que, por trás do código que
é o preço da revista, o que se passa é que o homem pagou para que a mulher tirasse a roupa e se sentisse desta ou daquela maneira perante a lente do fotógrafo; que nada daquilo aparece do vazio, que o homem ordenou e a mulher obedeceu, que cada “produto” contém a sua própria “história”.
A Febre faz isto: fura os códigos, revelando o que está por trás deles, não deixando nunca que nos sintamos apenas, e oh tão confortavelmente, “espectadores”. Não, aqui estamos dentro da “história”, não viemos do nada e não estamos no meio do nada, somos “actores”. E, portanto, em consequência, saindo daqui, não teremos de agir?"

Jacinto Lucas Pires

Um texto que fala da vida, do bom e do mau, do belo e do feio, que é calmo e que se revolta, a meu ver, muito bem interpretado por João Reis, que tanto nos deixa sobressaltados, como nos faz rir.
Saio da sala sentindo que é por aquilo que acabei de ver que venho regularmente ao teatro... saio sempre com um pouco mais do que levei!

1 comentário:

Paula Abreu Silva disse...

Gostei dos contrastes que a peça parece transmitir ...

Também partilho uma sensação bastante similar à tua relativamente ao teatro ... e não só !
E por isso as próximas peças são: "Hanna e Martin" de Kate Fodor e "A Cidade" a partir de textos de Aristófanes ! ;)

Bjinhos